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Brasil deve ter equidistância entre EUA e China, afirma professor André Reis, de Relações Internacionais

O professor de Relações Internacionais da Ufrgs André Luiz Reis da Silva acredita que, em meio a guerra tarifária deflagrada em abril pelo presidente estadunidense Donald Trump, o Brasil deve manter uma política de equidistância entre as duas maiores potências do mundo, os EUA e a China. "A economia diversificada e o peso do Brasil no cenário internacional não permitem que a gente fique atrelado a um único polo de poder."

A guerra tarifária acontece em um contexto geopolítico em ebulição: de um lado, as instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), estão em crise; de outro, os EUA passam a dividir a influência global com potências emergentes, como a China, Índia e Rússia.

Nesse contexto, André Reis avalia que o Brics - bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outros seis membros - ganha força no comércio global. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), os 11 países do bloco somam 40% do PIB mundial. Apesar de alguns líderes do Ocidente (Europa e América do Norte) considerarem o bloco "antiocidental", o professor da Ufrgs o classifica apenas como "não-ocidental".

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele também analisa as vantagens oferecidas pelo Brics ao permitir o comércio com moedas dos países-membros e a criação de novos métodos de pagamento internacional.

Jornal do Comércio - Aparentemente, o mundo passa pela maior transformação geopolítica desde a Segunda Guerra Mundial. Um dos assuntos mais discutidos pelos analistas é a transição da Ordem Liberal Internacional para o Mundo Multipolar. Poderia explicar essas duas perspectivas?

André Reis - A Ordem Liberal Internacional é um conjunto de normas, valores e instituições que gerenciam as relações entre os países. Esse modelo foi criado após a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos se consolidaram como a maior potência do Ocidente. Na época, o país respondia por metade da produção industrial do planeta, era credor dos países do ocidente (que estavam sendo reconstruídos) e a única nação com bomba atômica. Então, os EUA foi o grande patrocinador dessa ordem ao longo do século XX, o que resultou em organismos internacionais como a ONU e a OMC, além de normas sobre como fazer a guerra (Convenção de Genebra), regras para armas atômicas (Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares) e outras iniciativas. Além disso, o dólar substituiu o padrão ouro e as forças armadas estadunidenses passaram a garantir a segurança global do ocidente contra os comunistas (durante a Guerra Fria). Essa ordem era chamada de "liberal", porque suas normas refletiam os valores liberais e democráticos do ocidente.

JC - Nas últimas décadas, muitos líderes mundiais têm reclamado de que instituições internacionais, como a ONU, não conseguem mais produzir resultados práticos - seja nas negociações de paz, seja nas mediações sobre a emergência climática. Por que os analistas dizem que a Ordem Liberal Internacional está em crise?

Reis - Essa ordem sempre foi questionada por dentro e por fora das instituições. Por exemplo, muitos países - que hoje fazem parte do Brics - criticavam esse modelo por refletir os interesses dos países ocidentais. O curioso é que, nos últimos anos, após o surgimento de outras potências emergentes, esse modelo passou a ser questionado pelo seu maior patrocinador, os Estados Unidos. Há setores estadunidenses mais conservadores que questionam e desrespeitam as regras que eles próprios criaram nas últimas décadas. Só que, quando as regras são desrespeitadas pelo país que representa o núcleo mais robusto desse modelo, isso cria uma crise de legitimidade na Ordem Liberal Internacional. Por exemplo, em 2003, o Conselho de Segurança da ONU votou contra a guerra no Iraque, mas, mesmo assim, o país foi invadido. As próprias tarifas impostas pelo presidente Donald Trump são uma violação das regras de comércio internacional da OMC. Hoje a ONU e a OMC são praticamente inoperantes.

JC - Por que os analistas dizem que hoje o mundo é multipolar?

Reis - Nas últimas décadas, o poder dos EUA diminuiu em relação a outros polos emergentes de poder, como a China, Índia, Rússia e a União Europeia. Mas isso não significa que ele deixou de ser a maior potência do mundo, apenas que perdeu poder relativo na economia e no setor militar. Do ponto de vista econômico, o epicentro do capitalismo se deslocou para a Ásia, entre a Índia e a China, dois países que têm cerca de 40% da população mundial. A indústria asiática trouxe novos padrões de produção, mão de obra mais barata, tecnologia industrial mais avançada, mais agilidade produtiva. Aliás, o grande acontecimento do século XXI foi a China ter se tornado o motor do capitalismo.

JC - E quanto ao poder militar?

Reis - É a mesma coisa. Os Estados Unidos perderam poder relativo, mas continuam sendo a maior potência militar. Por exemplo, em 1945, as forças armadas estadunidenses eram as únicas que detinham armas nucleares. Nos anos 1970, o mundo já tinha cinco países com essa tecnologia (EUA, Rússia, Reino Unido, China e França). Hoje nove têm armas nucleares (Paquistão, Índia, Israel e Coreia do Norte se juntaram à lista). Mas os EUA são o único país do mundo que tem capacidade militar para interagir em qualquer cenário em poucas horas. Além disso, poucos países têm capacidade de contra-atacar. Atacar primeiro, todo mundo pode. Mas responder a um ataque, poucos países conseguem. Além dos EUA, apenas países como a Rússia e a China têm essa capacidade.

JC - Trump e alguns líderes europeus classificam o Brics como antiocidental. Onde o bloco se encaixa nessa transição entre a Ordem Liberal Internacional e o mundo multipolar?

Reis - O Brics não é um bloco antiocidental. Diria que ele apenas não é ocidental. O Brics surgiu com um conceito empresarial, para articular pautas econômicas e comerciais de vários países. Aliás, a primeira menção ao Bric (ainda sem a inclusão da África do Sul) foi feita pelo economista do banco Goldman Sachs Jim O'Neil em 2001, quando publicou uma projeção dizendo que a economia do Brasil, Rússia, Índia e China iria superar a economia do G7 por volta de 2030. Na época, isso chocou os analistas, mas os números foram se cumprindo ao longo do tempo.

JC - A ideia do Brics surgiu a partir desse estudo do Goldman Sachs...

Reis - Muitos desses países se viam em posições subalternas no cenário internacional. Por isso, surge a ideia de articular politicamente os países do Brics para ganhar mais força nas negociações comerciais internacionais. Hoje, basicamente, os membros do bloco se reúnem para discutir as posições em comum e, sim, muitas vezes, eles questionam as regras da ordem internacional criada pelos EUA e Europa. Eles criticam certas regras, valores e instituições sob o argumento de que o mundo mudou, portanto, são necessárias novas regras. Isso gerou uma zona de tensão entre os países do Ocidente e o Brics.

JC - O último relatório do Fórum Econômico Mundial alerta para o risco do uso político do dólar e do sistema financeiro internacional. O estudo aponta a guerra na Ucrânia como um momento crítico, porque a Secretaria do Tesouro dos EUA usou o sistema de pagamentos internacional Swift para excluir a Rússia do comércio global e congelou as reservas russas em dólar. A escalada de sanções gerou uma crise de confiança no sistema baseado no dólar. O Brics seria uma alternativa?

Reis - Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA ofereceram ao mundo o dólar como moeda internacional, com a garantia do seu Exército e da sua economia. O problema é que eles passaram a privar os seus adversários do sistema em dólar. Além disso, eles estabeleceram o dólar como moeda mundial quando eles tinham a maior economia do mundo, disparado. Agora já é possível confiar em outras moedas. Então, o motivo da fricção geopolítica é a ascensão de outras economias, principalmente a chinesa, e a oferta de alternativas ao sistema vigente, como é o caso do Brics.

JC - Como exatamente o Brics é uma alternativa? Por que ele é atrativo aos países do sul global?

Reis - Por exemplo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) costumava emprestar dinheiro para os países sob certas condições: os governos recebiam o empréstimo, mas tinham que seguir uma agenda liberal de austeridade fiscal, reduzir gastos públicos etc. Às vezes, os técnicos do FMI faziam a gestão junto com os governos, praticamente. Além disso, os juros eram altos. O Brics não só questionou isso, como mostrou que é possível outro tipo de financiamento internacional, ainda que o Banco do Brics seja muito menor que o FMI e o Banco Mundial. Então, basicamente, tem um banco gigante oferecendo empréstimo sob várias exigências, e tem um banco menor oferecendo dinheiro sem se preocupar se o país é uma democracia, se está brigado com o Ocidente, se está alinhado com a agenda liberal. Por isso, muitos países estão interessados em entrar nos Brics.

JC - Os membros do Brics têm discutido novos métodos de pagamento. Alguns líderes falam até na criação de uma moeda própria. Isso levou Trump a condenar qualquer plano do bloco de diminuir o uso do dólar. A substituição seria uma tendência no sul global?

Reis - O que parece estar em curso não é uma substituição do dólar como moeda do comércio global, mas uma diversificação dos métodos de pagamento. Assim como as pessoas passaram a ter alternativas - dinheiro, cartão de crédito, débito, Pix -, os países também terão mais de um método de pagamento. É um processo lento que o Brics e outros países vêm discutindo. Existem várias alternativas para pagamentos internacionais na pauta: transações através da tecnologia blockchain (a mesma das criptomoedas), moedas alternativas, moedas digitais, cestos de moedas de curva média entre os países do Brics. Há estudos em andamento para ver qual seria o melhor método para criar uma espécie de Pix internacional.

JC - Segundo o Fórum Econômico Internacional, em 2024, 48% do comércio internacional foi feito em dólar; 22% em euros; 7% em libras esterlinas; 4% em yen japonês; e 4% em remimbi chinês. Se o uso do dólar diminuir, haverá problema para a Casa Branca refinanciar a dívida estadunidense?

Reis - O sistema da dívida estadunidense depende muito do dólar como moeda global. A Casa Branca precisa que os países usem o dólar e comprem títulos do Tesouro estadunidense para refinanciar sua dívida (cujo valor acumulado passa de US$ 36 trilhões). E o Brics tem viabilizado o comércio com moedas dos países-membros. Até porque o dólar já não é a única moeda utilizada no comércio internacional. Há outras moedas fortes, como o euro. Mas por que o Brasil precisa negociar com a China em dólar? Nesse sistema, uma terceira parte, os EUA, tem gerência sobre o comércio entre Brasil e China. Faz mais sentido esses dois países negociarem com suas próprias moedas. Inclusive, é mais barato, porque diminui os custos cambiais.

JC - Após as tarifas de 50% ao Brasil, alguns analistas levantaram a hipótese de aproximação com a China. Além da boa relação diplomática, oferece um potencial de investimento maior que os EUA. Mas, aparentemente, o Itamaraty optou por manter a política de equidistância entre as duas potências. Como avalia?

Reis - A ideia da equidistância é a barganha. Temos uma grande interação com os EUA em termos de tecnologia, ciência, cultura. Claro que as oportunidades que a China oferece são gigantescas. Por exemplo, muitos representantes da indústria brasileira costumavam reclamar que a China causou a comoditização da economia brasileira (pela importação massiva de produtos primários), fazendo a agricultura crescer demais em relação à indústria. Os chineses foram muito receptivos a essa crítica, tanto que eles têm trazido suas montadoras e o setor de infraestrutura para cá. E o comércio chinês com o Brasil é deficitário, mas eles nunca se incomodaram com isso. Então, a China oferece oportunidades. Mas não são as únicas opções. É sempre bom olhar para outros lados.

JC - Então, uma política neutra em relação a essas potências continua sendo a melhor opção...

Reis - Creio que sim. A economia diversificada e o peso do Brasil no cenário internacional não permitem que a gente fique atrelado com um único polo de poder. Por exemplo, São Paulo fornece muitas peças de carros e aeronaves para a indústria norte-americana; Mato Grosso e Rio Grande do Sul têm um mercado exportador totalmente voltado para a China e o Oriente Médio, para onde vendem soja e proteína animal. Pode-se buscar também a alternativa europeia, nos países africanos, Rússia. Temos uma boa relação com todos esses polos. É importante mantermos essa diversificação de parcerias.

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