Manifestação de trabalhadores no Rio de Janeiro em 1961

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Legenda da foto, Manifestação de trabalhadores no Rio de Janeiro em 1961
    • Author, Edison Veiga
    • Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
  • 26 dezembro 2025, 08:35 -03

    Atualizado Há 23 minutos

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Depois de 14 meses de debates no Congresso Nacional, no dia 24 de dezembro de 1925, há 100 anos, na véspera do Natal, o presidente Arthur Bernardes (1875-1955) assinou o decreto que permitia ao trabalhador brasileiro ter um descanso anual remunerado.

Era a chamada Lei de Férias, primeiro dispositivo legal da história do país a reconhecer ao trabalhador brasileiro esse direito — mas por apenas 15 dias, diga-se.

Embora a regulamentação ainda levasse outros dez meses para ocorrer, a notícia foi publicada na época acompanhada de expressões que diziam ser aquele um "presente de Natal" do governo ao trabalhador.

De acordo com o texto da lei, o direito se aplicava "aos empregados e operários de estabelecimentos comerciais, industriais e bancários, sem prejuízo de ordenado".

Em nota publicada cinco dias depois no jornal Correio da Manhã, a Associação dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro comemorou a lei, definindo-a como resultado de uma "bela e pacífica vitória" e "o presente de festas da operosa classe".

Presidente Artur Bernardes e seus ministros, em foto de 1922

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Presidente Artur Bernardes e seus ministros, em foto de 1922

Luta antiga

No texto, a entidade reivindicava o reconhecimento de que o benefício era resultante de luta antiga, "mais de 15 anos", dos seus membros.

Segundo a associação, a pausa significava "o gozo de uma regalia tão necessária à saúde dos que mourejam numa lida afanosa de um ano inteiro de labor".

Era uma época de quase inexistentes direitos dos trabalhadores. Além de não terem férias, as jornadas costumavam ser longas — 10 ou 12 horas por dia eram consideradas normais — e não havia medidas que os protegessem socialmente em caso de necessidade ou mesmo desemprego. Descanso, só aos domingos.

Não à toa, a imprensa vinha encampando naqueles anos 1920 a necessidade de um dispositivo que garantisse férias — benefício que, vale ressaltar, algumas empresas já concediam informalmente a seus trabalhadores.

Além disso, embora não houvesse um dispositivo legal que obrigasse férias para todos, algumas categorias profissionais já contavam com esse direito graças a acordos sindicais, como professores, militares, funcionários do Judiciário e servidores públicos em geral.

O Jornal do Brasil afirmou que o trabalho ininterrupto "de ano a ano e de sol a sol" podia prejudicar a saúde dos empregados. "O repouso redunda em benefício dos próprios patrões", argumentou a publicação.

"Tão certo é que um auxiliar bem disposto, com o organismo reconfortado pelo descanso, se torna muito mais capaz e eficiente".

Já o jornal O País escreveu que a lei vinha em boa hora, uma vez que "afora o descanso universal do domingo, nenhuma outra pausa existe para os empregados no comércio, que levam assim uma vida das menos invejáveis que se conhecem do ponto de vista do conforto".

O clamor popular por férias para todos fazia parte das pautas sindicais pelo menos desde o início da década de 1910. Em 1917, por exemplo, uma greve geral em São Paulo levou quase 50 mil operários para as ruas — e este era um dos pedidos da categoria.

O contexto brasileiro espelhava o cenário internacional. Em 1919, o Tratado de Versalhes, documento internacional que botou no papel dos termos de paz pós-Primeira Guerra, definiu também a criação da Organização Internacional do Trabalho, visando à definição de um aparato legal de proteção ao trabalhador.

Cenário político

A proposta foi apresentada pelo deputado federal Henrique de Toledo Dodsworth Filho (1895-1975), do Rio de Janeiro. O texto original, contudo, beneficiaria apenas os trabalhadores do comércio — durante as discussões, a medida acabaria sendo expandida para todo trabalhador urbano.

Na época, Dodsworth chegou a afirmar que seu projeto de lei apenas generalizava e obrigava uma prática que "muitas casas […] já concediam" a seus empregados.

Relator da proposta na Comissão de Constituição de Justiça da Câmara, o deputado federal Aníbal Benício de Toledo (1881-1962) justificou que a medida "se funda na necessidade fisiológica do repouso anual".

A cientista política Mayra Goulart lembra que aquele era um momento de transformação do capitalismo brasileiro, um período marcado por urbanização, expansão do trabalho assalariado e aumento dos conflitos sociais nas cidades.

"Nos anos 1920, o Brasil começa a enfrentar de forma mais explícita as tensões geradas pela incorporação de setores populares ao mercado de trabalho urbano, em um cenário internacional atravessado pelo impacto da Revolução Russa, pela reorganização do movimento operário e pela emergência de respostas autoritárias e corporativas ao conflito de classes", comenta Goulart, coordenadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada (Lappcom) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"Nesse contexto, o trabalhismo começa a se desenhar como uma alternativa intermediária às saídas consideradas radicais ao questionamento do capitalismo. De um lado, o comunismo; de outro, o fascismo", prossegue Goulart.

"A incorporação seletiva de direitos sociais passa a funcionar como estratégia de contenção do conflito, de reconhecimento limitado das demandas populares e de preservação da ordem."

Assim, Goulart explica que a lei de férias "se insere nesse movimento: não rompe com a lógica capitalista, mas reconhece o descanso como um direito legítimo, ainda que de forma incipiente e pouco efetiva."

"Do ponto de vista socioeconômico, portanto, a lei atende a múltiplos interesses: sinaliza modernização institucional, responde parcialmente às pressões do mundo do trabalho urbano e contribui para enquadrar politicamente as demandas populares dentro dos limites definidos pelo Estado", pontua a professora.

Pautas como a das férias passaram a ganhar a adesão dos políticos, se não por simpatia, pelo medo.

O deputado federal Agamenon de Godoy Magalhães (1893-1952), por exemplo, chegou a fazer um pronunciamento dizendo que "evoluir", no sentido de aprovação a legislação das férias, era a maneira de "evitar que a questão social no Brasil se resolva pela revolução". Magalhães era o relator do projeto na Comissão de Legislação Social da Câmara.

Deputado Henrique Dodsworth, autor do projeto de lei

Crédito, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro/ Domínio Público

Legenda da foto, Deputado Henrique Dodsworth, autor do projeto de lei

Empresários diziam que lei significava a falência

Entre os patrões, contudo, a repercussão foi negativa.

Segundo registros da imprensa da época, os empresários alegavam que iriam à falência se tivesse de pagar salário mesmo no mês sem o serviço do trabalhador.

Como a lei falava que o direito vinha apenas após o décimo-segundo mês de emprego, também se tornou comum a demissão antes do fim deste período.

"A forte oposição dos industriais à legislação trabalhista também permite compreender como pensam e se organizam os industriais brasileiros", diz a historiadora Bruna Gomes dos Reis, professora no Serviço Social da Indústria (Sesi) e pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"Embora seja um marco na história da legislação trabalhista brasileira, sua efeméride é oportuna para nos alertar sobre não naturalizar os direitos trabalhistas. Sempre que possível, haverá resistência e articulação por parte da classe patronal para garantir artifícios de negociação que resultem no enfraquecimento dos direitos conquistados e no enfraquecimento da organização dos trabalhadores."

Reis destaca que, desde a assinatura da nova lei, houve resistência dos patrões de reconhecer esse direito.

"Os argumentos são impressionantes, desde argumentos sobre produtividade, do custo e do impacto na produção das férias de 15 dias, argumento moral, como que os trabalhadores braçais não teriam nada para fazer em 15 dias, que o trabalho industrial no Brasil já era repleto de folgas e que esses trabalhadores não teriam condições intelectuais de se disciplinarem longe do ambiente de trabalho."

De acordo com os pesquisadores, a grande maioria acabou ignorando a existência da lei. O governo a aprovou, mas não criou um órgão fiscalizador.

"Formalmente, a lei beneficiava trabalhadores urbanos do setor privado, especialmente dos ramos comercial, industrial e bancário. Na prática, o alcance foi limitado, tanto pela fragilidade da fiscalização quanto pelo perfil restrito da população abrangida", ressalta Goulart.

Aquela década foi marcada pelas dificuldades políticas enfrentadas durante a conturbada presidência de Bernardes, um mandato pontuado por conflitos entre oligarquias, revoltas militares, questionamentos e crises.

"Nesse cenário, ainda que o sistema fosse excludente, o apoio popular não era irrelevante. Em momentos de disputa entre elites, a mobilização, ou neutralização, das classes populares podia ser decisiva",analisa Goulart.

"Bernardes governou sob estado de sítio por longos períodos, combinando repressão com iniciativas pontuais de caráter social. A lei de férias deve ser lida nesse registro: uma tentativa de ampliar a base de sustentação política e reduzir tensões sociais sem alterar estruturalmente o regime."

O historiador Paulo Henrique Martinez, professor da Unesp, tem visão semelhante.

"O governo Bernardes transcorreu quase na totalidade sob o estado de sítio, com rebeliões, denúncias, acusações e, logo, crescente e violenta repressão governamental", afirma Martinez.

O historiador pontua que o pânico se disseminava "entre as elites econômicas e governamentais" e um clima de "terror policial" se direcionava a sindicatos e movimentos grevistas.

Reis ressalta que este momento ficou marcado "pelo crescimento das cidades" e "por um ciclo de greves de grande proporção". Além disso, em 1922 foi criado o Partido Comunista Brasileiro, um ingrediente a mais na causa trabalhista.

"Arthur Bernardes enfrentou forte insatisfação militar, sendo seu governo marcado pelo movimento tenentista, que tinha a derrubada do governo de Bernardes como um de seus objetivos", explica Reis.

"Foi um presidente impopular não apenas entre os tenentes, mas nas áreas urbanas como um todo, por causa da crítica situação econômica nacional e por sua postura autoritária, marcada pelos decretos de estado de sítio e fortalecimento do poder executivo."

Nasce a CLT, bandeira e símbolo de Vargas

Para o proletariado, a garantia dos direitos só viria a partir dos anos 1930.

Em 1932, o governo Getúlio Vargas (1882-1954) criou o Ministério do Trabalho. Com a pasta, veio todo o aparato para regular e fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista.

A Justiça do Trabalho seria instituída em 1941. Dois anos mais tarde seria publicada a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT — que se tornaria uma bandeira e um símbolo da gestão Vargas.

"A principal mudança está no grau de institucionalização. A lei de 1925 inaugura o reconhecimento legal do descanso remunerado, mas, sem mecanismos eficazes de execução", analisa Goulart.

"Nos anos 1930 e, posteriormente, com a CLT, ocorre a construção de um sistema mais amplo de regulação do trabalho, com burocracias estatais, registros formais, mediação de conflitos e maior capacidade de aplicação da lei", prossegue.

"Ao mesmo tempo, mantém-se o perfil urbano da proteção social. A CLT não universaliza os direitos trabalhistas para todo o mundo do trabalho, mas aprofunda um modelo que combina ampliação de direitos, controle estatal e integração política dos trabalhadores urbanos. A lei de 1925, nesse sentido, funciona como ponto de partida desse processo."

Gradualmente, o benefício das férias não só se tornou inquestionável como também foi ampliado.

Em 1949, o período de descanso saltou de 15 para 20 dias. Em 1977, a lei passou a garantir os atuais 30 dias.

Com a Constituição de 1988, os trabalhadores com carteira assinada passaram a ter direito a um adicional de um terço do salário, à guisa de bonificação, junto ao período de férias.

Mesmo com as limitações, a legislação de 100 anos atrás deve ser compreendida como um marco fundador, defende Goulart, lembrando que o dispositivo abriu o espaço para uma série de conquistas posteriores.

"A reação empresarial da época, com o argumento de que a lei 'quebraria o país', é particularmente reveladora. Esse discurso não é exclusivo daquela época. Ele reaparece recorrentemente sempre que há tentativa de ampliar os direitos trabalhistas."

Para Reis, a lei de 1925 se tornou importante pelas lacunas no âmbito prático, afinal "é a memória de que, no Brasil, os direitos trabalhistas não são nunca uma garantia e que a legislação não foi e não será suficiente para garanti-los".

Getúlio Vargas em SP em 1954

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Getúlio Vargas em SP em 1954