Quando diferentes teologias enfatizam o poder mágico, curador ou transcendental da "palavra", o que estão dizendo é que falta algo para completar a imperfeição da linguagem: a nossa fé. É a crença nas instituições religiosas, nas práticas comunitárias de oração e na liturgia que dá força à palavra, salva e cria mundos.
O que vemos em "O Céu da Língua", em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, é uma viagem pela imperfeita perfeição da linguagem.
A peça começa com referências a Camões, tem música e figurinos do século 16 e me preparava para uma jornada didática sobre o barroco. Mas não era nada isso. Ou melhor, era muito mais do que isso, apesar disso.
Gregório nos leva por uma discussão prática e bem-humorada sobre como aprendemos a falar e como como a infalização do discurso acompanha nossa vida amorosa — e denuncia nossas fantasias.
Sempre com a leveza afiada da crítica que cabe à comédia, a peça passa pelos ajustes do novo acordo ortográfico, as mazelas da colonização linguística no Brasil e até pela poesia concreta escondida na palavra "lágryma" quando ela perder o "y".
Depois, passamos pela poesia espontânea da língua, quando certas palavras parecem feitas sob medida para o que representam. "Afta", por exemplo: é chata, persistentemente dolorosa e difícil de pronunciar.
Uma das minhas preferidas foi o som do bem-te-vi. Em português, ele diz "fui visto por você". Em francês, "qu'est-ce qu'il dit?" — o que está dizendo? Em inglês, "kisskadee" vira um "beijo do Kuko".
E ainda há quem ouça, em português, um triste "vida-triste".
Torna-se uma espécie de pássaro-Rorschach, que revela como o sujeito, a cultura e a história se infiltram nessa ferramenta imperfeita que é a linguagem — especialmente nos seus ruídos, mal-entendidos e ambiguidades.
É aqui que a peça começa a ficar mais séria, nos trazendo para o universo da poesia incontrolável que brota da língua quando enfrentamos estados alterados de consciência — como o apaixonamento, o amor ou o ódio.
De repente, vemos letras e palavras dançarem em projeções visuais bem feitas, com a naturalidade de algo arranjado pelos dedos humanos.
Surgem palavras que tensionam os limites da nossa linguagem. Sempre dou o exemplo da palavra japonesa Pikari — que Gregório não usa na peça, mas que caberia. Ela designa "o som da luz refletindo sobre uma superfície verde, num dia de primavera".
Só essa ideia — de que podemos ouvir a luz — já desafia toda a lógica kantiana que organiza nossa visão de ciência e de ética.
Um dos aspectos mais inteligentes da peça é o jeito como ela lida com os palavrões. Em vez de usá-los como recurso óbvio para gerar identificação, já que é um atalho pra criar uma certa intimidade, a peça torna os termos chulos eruditos, históricos e datáveis, invertendo assim a relação entre cultura erudita e popular.
O ponto alto desse é quando chegamos ao "caralho" — uma palavra que, além de única na nossa língua, é única na comparação com outras línguas ao longo do tempo.
Contra o clássico da "excepcionalidade" da língua portuguesa, representado, quase sempre, pela palavra "saudade", a peça traz algo bem mais amplo e sólido: a força simbólica do luar.
O mito do Sol e da Lua, tão presente nas culturas ameríndias das Américas, aparece como comunhão e rapto, irmandade e conflito. E sempre há um elo entre eles: uma flauta mágica, uma corda, um junco, um cachimbo de rapé ou ayahuasca.
Antes, "a revolução será poética". Agora, talvez seja mais justo dizer que a sobrevivência começa pela poética e pela língua.
Para quem acha que Gregório Duvivier deixou a política de lado ao se aposentar o Greg News, a peça mostra um giro discursivo ainda mais radical, agudo, perturbador. Um chamado pra começar tudo de novo — do zero. Ou melhor, da linguagem.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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7 meses atrás
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