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- Author, Priscila Carvalho
- Role, De São Paulo (SP) para a BBC News Brasil
Há 11 minutos
"Minha filha estava me fazendo vergonha por causa de um suco."
Foi com essa frase que uma mulher publicou no TikTok um vídeo em que força a filha a consumir a bebida repetidamente, até a criança chorar e afirmar que não aguentava mais.
Segundo a mãe, a menina costumava desprezar o suco em casa, a ponto de deixá-lo estragar. No entanto, ao visitar uma tia, a criança afirmou que seu sonho era ter uma geladeira cheia com os produtos daquela marca.
Como resposta, a mãe comprou várias caixas do suco e obrigou a filha a ficar sentada até consumir tudo.
As imagens, publicadas há alguns meses, somaram mais de um milhão de curtidas e milhares de comentários — alguns apoiando a atitude, outros acusando a mulher de tortura psicológica e de expor a filha de forma constrangedora.
Dias depois, a própria mãe voltou à rede social para afirmar que a filha vinha mentindo havia semanas e que tentou conversar com ela antes, mas sem sucesso.
Disse ainda que sua atitude foi uma forma de punição e que "jamais deixaria a filha crescer sem princípios."
A BBC News Brasil procurou a mulher para mais esclarecimentos, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Este não foi um caso isolado — há até um termo em inglês que vem sendo usado para falar da superexposição digital dos filhos, o oversharenting (uma junção das palavras over, que significa algo excessivo, que vai além; share, de "compartilhar"; e o final da palavra parenting, que remete à criação de filhos).
Nas redes sociais, a vida doméstica com filhos pequenos virou conteúdo e, muitas vezes, fonte de renda.
"Do ponto de vista emocional, especialmente quando se trata de expô-las a situações embaraçosas, isso pode afetar em grande medida a saúde mental, os relacionamentos sociais e as perspectivas da criança, no presente e no futuro, junto a seus amigos e conhecidos", afirma Maria Mello, coordenadora do eixo digital do Instituto Alana.
"Pode, ainda, minar sua autoestima e deixá-las mais ansiosas, por exemplo, e fissurar o próprio relacionamento da criança ou adolescente com suas famílias", complementa Mello.
Um dos primeiros casos a trazer o assunto à tona no Brasil ocorreu em 2020, quando a hashtag #SalvemBelParaMeninas esteve entre os assuntos mais comentados do Twitter.
Internautas acusavam os pais da então pré-adolescente Bel, à época com 13 anos, de forçá-la a participar de vídeos para os canais "Bel Para Meninas" e "Fran Para Meninas", que somavam mais de 13 milhões de inscritos.
As críticas vieram após a repercussão de conteúdos produzidos ao longo da infância da garota.
Entre os vídeos citados estava um de 2015, em que Bel aparece no mar com a água quase à altura do queixo.
No fim da gravação, um adulto estende a mão e ela explica que tudo se tratava de uma encenação para alertar sobre os riscos de afogamento.
Em outro registro, também antigo, a menina vomita durante um "desafio", ao experimentar um alimento de gosto forte, incentivada pela mãe.
Na época, o pai afirmou por e-mail à imprensa que os vídeos não seguiam o formato de reality show e que a família mantinha controle editorial sobre tudo o que era publicado.
Disse ainda que muitas histórias eram roteirizadas e gravadas com fins de entretenimento, dentro de uma proposta definida previamente por eles, em comunicação com a criança.
Agora Bel, que está com 18 anos, voltou ao tema em publicações recentes e negou ter sido forçada a participar dos vídeos.
Segundo Isabel Peres, o caso ganhou uma dimensão desproporcional e seus pais foram mal interpretados.
Danos às crianças
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O hábito de publicar cenas do dia a dia das crianças nas redes sociais, ainda que com boas intenções, pode desencadear consequências sérias e pouco visíveis de imediato, de acordo com as entrevistadas.
O alcance digital faz com que esses registros, muitas vezes de momentos de vulnerabilidade, escapem do controle dos responsáveis e passem a circular entre milhares ou até milhões de usuários.
Quando isso envolve a exposição de crises de choro, birras ou dificuldades escolares, por exemplo, a criança pode ser exposta a um tipo de julgamento público para o qual não tem qualquer preparo emocional, segundo especialistas ouvidas pela reportagem.
"As crianças e adolescentes que estão expostas ao ambiente digital vão enfrentar um futuro incerto. Estamos falando de uma geração que terá sua vida toda datificada e ainda não se sabe exatamente de quais maneiras os milhões de rastros digitais deixados por eles poderão impactar em seu futuro", alerta Mello.
A psicóloga Patrícia Guillon Ribeiro, mestre em Psicologia da Infância e Adolescência e professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), explica que o impacto dessa exposição vai depender da idade da criança e do quanto ela entende o que está acontecendo.
Em crianças pequenas, o dano emocional pode não ser imediato. Mas entre as maiores, a exibição de momentos íntimos pode interferir diretamente na construção da autoestima.
"A exposição social de uma fragilidade do ser humano compromete a formação da noção de 'eu', que na infância está em franco desenvolvimento", afirma Ribeiro.
Ela compara esse tipo de exposição à sensação de ouvir uma bronca ou piada constrangedora diante de toda a família — mas em escala digital.
"Se a mãe expõe na rede uma crise de choro ou uma birra, a criança fica sem saber o que é certo ou errado. Ela está sendo repreendida, mas ao mesmo tempo está chamando atenção porque está sendo filmada. Isso gera uma ambiguidade na formação do senso moral e no entendimento das consequências dos próprios comportamentos", aponta a psicóloga.
'Modelo' para outras famílias
Para especialistas, esse tipo de conteúdo pode ser consumido em larga escala e tratado como modelo por outras famílias.
"Muitas famílias acabam por tornar determinados influenciadores referências de sucesso. Esse comportamento pode funcionar como um estímulo irresponsável a outras famílias para que exponham negativamente suas crianças e adolescentes, inclusive do ponto de vista da possibilidade de lucrar com isso", afirma Maria Mello, do Instituto Alana.
Um exemplo desse alcance é a influenciadora Virgínia Fonseca, que soma mais de 52 milhões de seguidores nas redes sociais e costuma compartilhar a rotina com os filhos pequenos.
Em entrevista recente ao canal de entretenimento Hugo Gloss, ela rebateu críticas sobre o excesso de exposição.
"As pessoas falam que exponho muito meus filhos. É a vida deles, eles nasceram de mim, é como estou hoje. Não vou parar de fazer tudo o que eu faço por conta deles. Eles vão ter que me seguir", argumentou.
Segundo Virgínia, ela só deixará de publicar caso algum dos filhos peça, no futuro: "Enquanto tiverem menos de 18 anos, eu mando e vai ser assim."
A reportagem procurou a assessoria da influenciadora, mas não obteve resposta aos questionamentos enviados.
Quando a exposição envolve lucro
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A exposição intensa de crianças nas redes também pode envolver implicações legais e comerciais.
Segundo Mello, quando a visibilidade nas redes leva crianças e adolescentes e estrelar campanhas publicitárias, seja sozinhas ou em família, o cenário muda.
Com retorno financeiro, a situação se torna um trabalho infantil artístico — o que exige cuidados legais, como alvará judicial.
"Essa responsabilidade é das agências, das empresas contratantes, das próprias plataformas e das famílias, que possuem o dever de zelar pelo bem-estar de suas crianças e adolescentes", explica.
A advogada Cléo Garcia, doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em Direito Educacional, critica esse tipo de trabalho — mesmo quando cumprindo requisitos legais.
Segundo ela, mesmo que os filhos aparentem gostar da atividade, não têm maturidade cognitiva, emocional e social para compreender o impacto futuro de sua exposição.
"Não é válido, legalmente, mesmo que a criança consinta. Muitas vezes elas dizem 'sim' apenas para agradar os pais", opina.
E há situações em que as normas ficam à margem.
Os jogos de azar são ilegais e proibidos no Brasil. Divulgá-los e promover seu uso por crianças e adolescentes fere leis de proteção à infância e regras de entidades como o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
Na ocasião, a Meta, a quem pertence o Instagram, afirmou que retirou os posts em questão.
A empresa afirmou também suas políticas "não permitem conteúdos potencialmente voltados a menores de 18 anos que tentem promover jogos online envolvendo valores monetários".
"Estamos sempre trabalhando para aprimorar a nossa abordagem em prol de um ambiente seguro para todos", assegurou a Meta.
Maria Mello lembra do caso.
"Essas crianças e adolescentes, em sua maioria, foram superexpostas, se tornaram mini-influenciadoras e passaram a reproduzir comportamentos de adultos em relação a conteúdos altamente prejudiciais ao seu desenvolvimento — tudo isso com a anuência das big techs", alerta.
'Me arrependi de posts'
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Por outro lado, há pais e responsáveis que estão escolhendo conscientemente não expor os filhos nas redes.
A influenciadora e neuropedagoga Maya Eigenmann, 38 anos, tem 1,3 milhão de seguidores no Instagram e meio milhão no TikTok.
Trabalhando há seis anos nas redes sociais, ela construiu sua presença digital falando sobre educação positiva e, no início da carreira, mostrava os filhos com frequência.
Mas, há cerca de seis meses, tomou a decisão de não expor mais o rosto ou sequer o nome das crianças.
"Já pensei: 'Ah, tudo bem, são só fotos'. Mas hoje eu vejo que é realmente um risco, é uma impressão digital que é deixada", afirma Maya, acrescentando que essa impressão digital é problemática mesmo quando o conteúdo é bem-intencionado.
A decisão também foi motivada pela segurança digital, após ela tomar conhecimento de como imagens de crianças circulam ilegalmente na internet, inclusive sendo manipuladas com uso de inteligência artificial (IA).
Maya, que mora em Curitiba (PR), afirma que nunca postou vídeos dos filhos chorando ou em situações delicadas — tipo de exposição que ela classifica como "um linchamento público aprovado pelos pais".
"A gente não expõe um adulto em um luto. Temos que compreender que as crianças que estão chorando, estão fazendo uma birra, elas estão passando por um luto emocional", argumenta.
Para ela, mesmo registros considerados "inocentes" podem ser problemáticos.
"Eu sempre tampo o rosto deles, até mesmo quando eu conto um relato a respeito das minhas crianças. Nem o nome deles eu coloco. Eu não quero que as pessoas que conhecerão os meus filhos no futuro já tenham preconcepções a respeito deles.", afirma.
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Rebecca Cirino, 38 anos, também atua nas redes sociais produzindo pautas sobre viagens e maternidade, em um Instagram com mais de 10 mil seguidores.
Ela evita postar conteúdos em que a filha de três anos apareça em situações constrangedoras.
"Nunca publiquei nada vexatório, mas já me arrependi de alguns posts no puerpério. Hoje apaguei tudo que pudesse causar desconforto no futuro. O que minha filha verá se buscar meu nome no Google?", diz a mãe, moradora de João Pessoa (PB).
Além da superexposição em troca de engajamento, ela se preocupa com a segurança digital da menor, principalmente com a atuação de "predadores" online.
"Evito imagens dançando, tomando picolé, com uniforme escolar", conta.
Ainda assim, Rebecca vê espaço para postagens com a imagem da filha.
"Eu gosto de compartilhar sempre momentos que ela se orgulharia de assistir no futuro. Como sempre falo de viagens e da minha jornada com a maternidade, quero que ela veja um dia tudo o que eu postei sobre ela e sinta orgulho, e não vergonha", relata.
Crédito, Getty Images
Especialistas entrevistadas endossam que é possível usar a internet de forma saudável ao retratar a infância, desde que com responsabilidade.
Isso implica não compartilhar conteúdos íntimos, não ridicularizar os filhos e evitar o uso comercial da imagem da criança.
As especialistas lembram que há casos de jovens que recorreram à Justiça para tentar remover imagens vexatórias publicadas na infância, o que evidencia como os impactos dessa exposição podem se prolongar por anos.
Para Mello, cabe ao Estado investir em ações educativas que orientem pais e responsáveis sobre os riscos da superexposição digital, além de fiscalizar práticas ilegais, como a publicidade infantil disfarçada.
"O tratamento predatório de dados pessoais e a exploração comercial da imagem das crianças devem ser enfrentados com o mesmo rigor previsto no ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], que garante a proteção integral da infância", afirma.
Garcia pede que o Estado atue com mais urgência e firmeza no tema da exposição digital dos menores, tanto por meio de campanhas educativas quanto com regulamentação específica.
Um exemplo é o Projeto de Lei 4776/2023, em tramitação, que visa regulamentar a prática de sharenting, estabelecendo limites legais e mecanismos de proteção à imagem e à privacidade das crianças.
Mello defende que os governos exerçam maior controle sobre as empresas de redes sociais.
"É importante, mais uma vez, que a discussão seja pautada do ponto de vista regulatório, no sentido de exigir que as plataformas digitais adotem medidas que facilitem o exercício desse direito ao esquecimento e apagamento do rastro digital", aponta.
A BBC News Brasil procurou as duas redes sociais citadas na reportagem.
A Meta, dona do Instagram, afirmou que não se posicionaria sobre o assunto.
Já o TikTok afirmou que o caso citado na reportagem, mostrando uma criança sendo obrigada a tomar suco, está sendo analisado e eventualmente pode sofrer a aplicação de "regras apropriadas" caso viole as diretrizes da plataforma.
A rede acrescentou ter diretrizes que proíbem "conteúdos que possam colocar jovens em risco de danos psicológicos, físicos ou ao seu desenvolvimento".
"Caso tomemos conhecimento de uma violação grave por parte de um titular de conta, baniremos a conta, bem como quaisquer outras contas pertencentes a essa pessoa", assegurou o TikTok em nota.
A plataforma afirmou ainda ter uma equipe de especialistas em desenvolvimento infantil que analisa as diretrizes da rede em relação às diferentes idades e que tem "políticas rigorosas" de publicidade para que os anúncios também sejam adequados a cada faixa etária.
"Entendemos que, como pais ou responsáveis, alguns usuários podem optar por criar uma conta que apresente seus filhos menores de 13 anos. Para evitar que a conta seja removida, deve demonstrar claramente que a administração é liderada por um adulto, incluindo a participação ativa de um adulto na produção do conteúdo", finalizou a empresa.
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