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Por que o setor elétrico não consegue lidar com seus próprios riscos?

O termo veio do conceito de que há instituições financeiras que são tão grandes que não podem ir à falência, sua insolvência causaria danos irreparáveis à economia real. O governo americano optou por resgatar gigantes bancários, por meio do Tesouro (ou seja, do contribuinte), para evitar um efeito dominó.

Do Lehman ao Master: riscos diferentes, lógica parecida

Muitos se lembram da exceção que virou símbolo daquela crise: o Lehman Brothers foi à falência em setembro daquele ano, num teste prático que validou a teoria. Deixar o banco quebrar custou caro à economia global. Naquela época, o contágio da crise no Brasil não foi a "marolinha" que o governo Lula 2 previa, mas foi limitado. Nosso mercado financeiro ainda era menos sofisticado e mais concentrado em renda fixa, o que limitou o contágio

Dezessete anos depois, a discussão sobre risco sistêmico voltou à pauta. Ontem, o Banco Central decretou a liquidação extrajudicial do Banco Master, e o FGC deve desembolsar mais de R$ 40 bilhões para honrar os depósitos elegíveis. Apesar do valor inédito, o mecanismo segue uma lógica de mercado: o FGC é privado, financiado pelos próprios bancos, sem necessidade de aporte do Tesouro ou do contribuinte.

Onde o setor elétrico entra nessa história

O leitor, agora, deve estar se perguntando: por que uma coluna que tem como tema principal energia está falando de risco sistêmico de bancos?

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O "too big to fail" me veio em mente nas últimas semanas, quando discutia (mais uma) socialização de perdas do setor elétrico com o consumidor, por meio da conta de luz.

No setor elétrico brasileiro, o segurador de última instância não é um fundo privado nem o Tesouro: é o consumidor, acionado compulsoriamente via tarifas e encargos quando problemas antes inesperados tomam proporção grande.

O seguro que não segurou

Não é preciso voltar muito no tempo para entender a relação. Na época da crise hídrica de 2014 e 2015, a escassez de chuvas expôs as hidrelétricas a um déficit de geração em relação aos contratos firmados, o que ficou conhecido pela sigla (mais uma) em inglês GSF, ou "risco hidrológico". Em bom português, trata-se da diferença entre a capacidade de geração das hidrelétricas e a energia efetivamente gerada.

Como o déficit do GSF, até então, não passava de 5%, e chegou a 20% em 2015. Como tinham vendido uma energia que não tinham gerado, as hidrelétricas ficaram expostas ao preço de energia no mercado de curto prazo, o PLD, que na mesma época explodiu. O resultado foi um rombo financeiro decorrente dessa exposição, que desencadeou uma judicialização em massa do setor, travando a liquidez do mercado de energia.

A solução política veio com a Lei 13.203 de 2015, de conversão da Medida Provisória (MP) 688, que instituiu a repactuação do risco hidrológico. O mecanismo criado pelo governo permitiu que as hidrelétricas que tinham vendido energia às distribuidoras de energia transferissem o risco para o consumidor.

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As empresas passaram a depositar um prêmio de risco mensal na Conta Centralizadora dos Recursos de Bandeiras Tarifárias. A teoria era de que esse prêmio funcionaria como um seguro: as empresas pagam para se proteger e, se o risco se materializar, o fundo cobre.

Na prática, foi um pouco diferente.

Não há divulgação desses valores pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e nem pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), entidade que faz a gestão da Conta Centralizadora dos Recursos de Bandeiras Tarifárias (para onde vão os recursos que pagamos na conta de luz quando é acionada uma bandeira tarifária).

O número mais recente já publicado consta em um documento da Aneel de 2022, que calculava que de 2015 até 2021, as geradoras aportaram aproximadamente R$ 2,5 bilhões a título de prêmio de risco. No mesmo período, o custo efetivo do risco hidrológico repassado aos consumidores superou a marca de R$ 36 bilhões. Ou seja, o seguro não cobriu sequer 10% dos sinistros.

A crise que agora vem do excesso de energia

Mais recentemente, uma nova crise se instaurou no setor elétrico, parecida com a do GSF. Novamente, empresas estão vendendo mais energia do que geram, mas o problema tem outro motivo: o crescimento acelerado da geração renovável dos últimos anos, que não foi acompanhado da demanda nem da infraestrutura necessária para levar a energia onde está o consumidor.

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Desde o apagão de agosto de 2023, o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), órgão que cuida de todas as redes que carregam energia elétrica pelo país, tem determinado cortes de geração renovável. Parques eólicos e solares têm desligado as máquinas mesmo quando há vento ou sol, por motivos que vão desde gargalos na transmissão de energia, por segurança na operação, ou ainda por excesso de geração em relação à demanda.

Esse impacto tem aumentado em ritmo acelerado, e estimativas apontam valores acumulados próximos de R$ 7 bilhões neste mês.

A solução passa por medidas estruturais de médio e longo prazo, exige investimentos expressivos na rede de transmissão, instalação de novos equipamentos, incentivos a mudanças no padrão de consumo de eletricidade, além da instalação de baterias em localizações estratégicas.

A MP (Medida Provisória) 1.304, aprovada pelo Senado em 30 de outubro e ainda não sancionada, trouxe uma solução mais simples: repassar o custo ao consumidor de energia.

A confusão é tamanha que a MP foi aprovada com dois dispositivos diferentes sobre o mesmo tema. Um mais amplo, com possibilidade de repasse de quase todos os custos à conta de luz, e outro restrito aos cortes por problemas na rede, alocando no gerador o risco da falta de demanda.

Ainda que sejam riscos que o gerador não tinha como prever, e que geram impacto significativo nas finanças, com possibilidade de comprometimento financeiro relevante para várias empresas, essa é mais uma alocação de risco em quem tem menos condições ainda de fazer a gestão dele: o consumidor.

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Não sabemos o impacto real

A falta de transparência agrava o cenário. Não há uma prestação de contas sobre o seguro do GSF, que existe há 10 anos.

Em participação numa audiência pública no Senado em 30 de setembro, o assessor do diretor-geral da Aneel, Julio César Rezende Ferraz, mencionou que o custo repassado ao consumidor por meio da conta de luz já chegou a R$ 45 bilhões. A coluna entrou em contato com a Aneel para pedir detalhamento dos valores, mas não teve resposta até o momento, nem mesmo por meio da Lei de Acesso à Informação. Neste caso, a Aneel disse simplesmente não ter as informações.

No caso do curtailment, o termo técnico para os cortes na geração de energia, ninguém sabe ainda qual seria o impacto na conta de luz. Os geradores renováveis têm argumentado que não haverá aumento imediato nem mesmo do ressarcimento retroativo a setembro de 2023, por conta de um "encontro de contas" com valores que alguns geradores devem por penalidades da energia cortada, mas não há cálculo oficial.

A Aneel informou que estimaria o impacto se fosse acionada pelo governo no processo de análise de vetos, o que não ocorreu até o momento, e o prazo final para sanção termina na próxima segunda-feira (24).

Não há convergência nem sobre a interpretação dos dispositivos da MP e o que seria realmente ressarcido.

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Pressões dentro e fora do Brasil

A confusão ficou tão grande que o presidente da França, Emmanuel Macron, aproveitou uma reunião bilateral com o presidente Lula em Belém, em 6 de novembro, para pedir que não vetasse a solução dos cortes.

O Embaixador da França no Brasil, Emmanuel Lenain, enviou ofício ao governo brasileiro se referindo ao encontro e defendendo a sanção da MP. Os dispositivos, se vetados, colocariam em risco projetos que representam investimentos anuais de 3 a 4 bilhões de euros no Brasil em renováveis e 20 bilhões de euros até 2030 no setor de hidrogênio verde.

Governadores do Nordeste, atentos ao peso dos investimentos para a região, defendem a sanção. Associações de consumidores, por outro lado, pedem o veto para reduzir impactos tarifários. A solução estruturante, que deveria ser prioridade, ficou em segundo plano.

A discussão sobre como tratar os cortes de geração renovável revela, mais uma vez, a dificuldade do setor elétrico em lidar com riscos que ganham escala e ultrapassam a capacidade individual das empresas. A MP 1.304 tenta responder a uma parte do problema, mas o debate sobre seus dispositivos expôs a falta de consenso, de dados consolidados e de previsibilidade regulatória.

Enquanto não houver uma estratégia clara para reduzir a frequência desses eventos e antecipar seus impactos, o sistema continuará operando em modo reativo.

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O setor ainda precisa definir como pretende lidar com choques que tendem a se repetir e ganhar escala. As decisões tomadas agora definirão se esses custos continuarão sendo repassados caso a caso ou se haverá um modelo mais claro e previsível para tratar eventos que já deixaram de ser exceção.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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