Ecce Homo original ao lado da restauração desastrosa de Cecilia Gimenez

Crédito, Centro de Estudos Borgianos

Legenda da foto, A pintura original de 1930 era considerada de baixo valor artístico
    • Author, Shin Suzuki
    • Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
  • Há 18 minutos

  • Tempo de leitura: 7 min

Morreu nesta segunda-feira (29/12), aos 94 anos, Cecilia Gimenez, a autora involuntária de um dos maiores memes da internet mundial.

Em 2012, munida de boas intenções, mas sem dominar as técnicas necessárias, Dona Cecilia tentou restaurar o afresco Ecce Homo, de Elias García Martínez.

A pintura estava nas paredes de um santuário religioso da cidade de Borja (norte da Espanha), de apenas 5 mil habitantes.

Tudo começou com um post de um blog dedicado à cultura de Borja que lamentava "um acontecimento inqualificável" e se perguntava quem tinha se arriscado a resolver os problemas de conservação da pintura.

"Desconhecemos as circunstâncias em que isso se produziu."

Mas a idosa paroquiana acabou identificada como responsável pela intervenção. E logo conheceria a força da viralização da internet.

Com as imagens do Ecce Homo repaginado circulando em alta rotação, dona Cecilia enfrentou um tsunami de chacotas nas redes sociais e nos programas de humor, virou tema de rodas de conversa pelo mundo.

Dona Cecilia Giménez

Legenda da foto, Dona Cecilia Giménez à época da realização do restauro

Pessoas correram para o Santuário da Misericórdia em Borja para ver o "meme ao vivo". O padre local chegou a solicitar ao prefeito para cobrir o quadro e assim evitar piadas. O pedido foi negado.

Já a idosa, sob ameaça de processo judicial em razão do que foi classificado de "ato de vandalismo", caiu em depressão. Chorou por vários dias.

Dona Cecilia foi marcada por batalhas difíceis durante a vida: um dos filhos tem uma lesão cerebral e vivia em uma cadeira de rodas junto à mãe. Outro filho morreu aos 20 anos por causa de uma doença muscular rara.

Mais tarde ela recuperaria seu ânimo. Percebeu que sua obra estava "dando a volta": pouco a pouco, a ridicularização cedia lugar à apreciação, muita vezes irônica, em um fenômeno típico da cultura da web.

Em pouco tempo a imagem se transformou em uma série de produtos de merchandising, como chaveiros, camisetas e imãs de geladeira, e até em uma ópera composta pelo norte-americano Andrew Flack em 2015.

Anos depois, Borja começou a celebrar sem nenhum constrangimento o seu Ecce Homo. O original, segundo críticos, tinha baixo valor artístico, mas a restauração que deu errado transformou a vida da obra.

Em 2022 o prefeito da cidade, Eduardo Arilla Pablo, disse à BBC News Brasil que ela era ainda "consciente do fenômeno" que sua intervenção provocou.

Dona Cecilia viveu seus últimos anos com saúde debilitada, em uma casa de repouso mantida pelo governo da região de Aragão. A causa da morte não foi citada, mas o prefeito escreveu em um post que ela "teve cumprido o seu desejo de falecer tranquila, com toda a sociedade borjana ao seu lado".

Turistas no Santuário da Misericórdia em Borja para ver o Ecce Homo modificado de perto

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Turistas no Santuário da Misericórdia em Borja para ver o Ecce Homo modificado de perto

Ela disse em uma entrevista recente à TV pública de Aragão que, se pudesse, "voltaria a tentar reparar o Ecce Homo". A um jornal do País Basco, outra região espanhola, afirmou que sempre gostou de pintar e tem boas recordações da restauração porque a "fez com carinho".

O prefeito de Borja conta que no próximo dia 10 de setembro haverá "uma cerimônia de reconhecimento a Cecilia Giménez e a Elias García Martínez" que será transmitida ao vivo pelo YouTube.

É um reconhecimento também ao grande impacto causado nessa pequena cidade localizada a 60 km de Saragoça e parte da região autônoma espanhola de Aragão.

"Turisticamente somos um produto mundial. Recebemos visitantes de 110 países do mundo", afirma Arilla.

No primeiro ano após o surgimento do caso houve uma explosão no número de turistas, com 40 mil visitantes em Borja.

"Agora se estabilizou. Mas trabalhamos para que essa cadeia nunca se rompa na hotelaria da cidade", diz Arilla. Agora, o fluxo fica entre 10 mil e 11 mil visitantes anualmente que testemunham ao vivo o que se celebrizou online.

Mas o que o prefeito pensa do que fez Dona Cecilia?

"Como instituição não podemos permitir que essas coisas aconteçam. Temos um grande patrimônio monumental e artístico e estamos empenhados em restaurá-lo. O que aconteceu foi um erro. Mas também é verdade que, uma vez que isso aconteceu, esse é o fenômeno pop, o ícone pop", afirma.

"Com todo o meu respeito à pintura original de Elias García, a obra mais importante agora se define ao modo de Cecilia Giménez."

O original: 'escasso valor artístico'

O afresco feito por García Martínez (1858-1934) é uma reprodução de outros Ecce Homo ("Eis o Homem", em latim) do passado. É um tema comum na arte europeia entre os séculos 15 e 17, cujo título alude à frase de Pôncio Pilatos quando apresenta Jesus Cristo torturado à multidão.

García Martínez foi professor da Escola de Belas Artes de Saragoça e também o patriarca de uma família de artistas do qual se destacou seu filho Honorio García Condoy, um escultor vanguardista.

A família costumava passar os verões na região de Borja, e foi isso que levou Garcia Martínez a produzir o afresco dentro do santuário no ano de 1930.

O diário espanhol El País classificou a pintura original como de "escasso valor artístico". A obra não chegou a ser catalogada pelos órgãos culturais de Aragão.

Uma turista fotografa o Ecce Homo restaurado no Santuário da Misericórdia em Borja

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Turista no Santuário da Misericórdia em Borja

Afinal, dona Cecilia fez arte?

"Cecilia Giménez criou algo totalmente diferente, com muito mais impacto do que a pintura original, que não seria esquecida porque nem sequer foi lembrada antes", diz Nathalia Lavigne, curadora e pesquisadora em cultura digital.

"Mas tudo aí é contexto, meme é contexto. A imagem penetrou na cultura visual contemporânea porque tinha todas as características de um meme: uma coisa de casualidade, de amadorismo e meio anárquica. Jamais foi a intenção dela o que aconteceu."

O caso do Ecce Homo refeito, segundo Lavigne, se relaciona a uma questão contemporânea: agora pergunta-se menos o que é a arte e mais onde é arte.

"Naquele contexto em que ela fez a restauração certamente não era arte. Mas pode ser visto dessa forma pensando numa ideia de longevidade da circulação da imagem, que vai determinar a importância sobre a vida do objeto."

Durante a "reabilitação" de dona Cecilia, surgiram visões inesperadas. O cineasta espanhol Álex de la Iglesia, diretor de filmes como O Bar e O Dia da Besta, declarou no Twitter que a imagem é um "ícone de nossa maneira de ver o mundo. Significa muito".

O crítico de arte americano Ben Davis chegou a colocar a restauração entre as 100 peças que definiram a década de 2010 ("uma amada obra-prima de surrealismo não-intencional").

Para Rob Horning, editor na revista eletrônica sobre tecnologia e cultura de internet Real Life, o meme na verdade "deu chance para satirizar simultaneamente a piedade da religião e a pseudo-religião da arte".

O resultado desastroso também "liberou nos espectadores uma sensação de superioridade", algo como olha o que essa senhora teve coragem de fazer.

O 'Ecce Homo' modificado por Cecilia Giménez no Santuário da Misericórdia em Borja, Espanha

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O 'Ecce Homo' pelas mãos de Elias García Martínez e modificado por Cecilia Giménez no Santuário da Misericórdia em Borja, Espanha

Horning observa que o sucesso das visitas turísticas a Borja também mostra uma curiosa relação mundo offline x mundo online: é como se a parede em que está o Ecce Homo de dona Cecilia dissesse para o espectador: "Eis a internet".

"A sensação deve ser bastante poderosa", diz Horning.

Há no meme de dona Cecilia em 2012 alguns caminhos que tornariam característicos na internet com o passar dos anos. O caso sugeriu, por exemplo, que as consequências para alguém que viraliza, mesmo em um contexto de ridicularização, podem não ser tão graves - e uma grande repercussão consegue ser até "monetizada".

Foi garantido a dona Cecilia 49% dos direitos de imagem de seu Ecce Homo, que ela aplica em um fundo para amparar pacientes que enfrentam a mesma doença que seu filho.

Mas a principal lição do meme, diz o jornalista, é que a internet "se aproveita dos fenômenos e os inverte". O meme, ao final, "deu a volta".

Até dona Cecilia parece mais convencida sobre sua obra. Em 2016, durante a cerimônia de inauguração de um "centro de interpretação" de seu trabalho em Borja, declarou: "Às vezes, de tanto vê-lo, penso 'meu filho, você já não é tão feio como me parecia no começo".