O voo 232 da United Airlines, de 19 de julho de 1989, ficou conhecido como “o pouso impossível”. A maneira encontrada para levar os 296 ocupantes de volta até o solo não estava escrita em nenhum manual da aeronave e não era treinada por nenhum piloto – e não é até hoje, já que os investigadores consideraram a situação complexa demais para ser exigida em simulador.
Esse acidente tem início cerca de 18 anos antes da decolagem, em meados de 1971, quando um pedaço de liga de titânio defeituoso foi usado para a fabricação do disco da hélice de um motor de aviação pela empresa GE. O material é conhecido por sua extrema resistência, mas, no momento em que é fundido, ele não pode ter contato com o ar, sob o risco de ficar enfraquecido e estar sujeito à fadiga.
Curiosamente, a GE aprimorou já no ano seguinte o manejo do material. A hélice fabricada, porém, já estava instalada no motor central da aeronave, um McDonnell Douglas DC-10 entregue para a United Airlines.
O modelo foi um dos trijatos (aviões de três motores) de fuselagem larga mais bem-sucedidos da história, fazendo voos de passageiros de 1971 até 2014. Os DC-10 fizeram voos de passageiros no Brasil entre os anos 1970 e o início dos anos 1990 —as companhias aéreas Varig e Vasp, já extintas, operaram essa aeronave.
O motor 2 ficava montado na cauda, enquanto os motores 1 e 3 ficavam nas asas da aeronave.
A FAA, agência que regula a aviação nos EUA, estipulava que a hélice do motor GE deveria ser trocada a cada 18 mil ciclos de pouso e decolagem, uma margem considerada segura para uma peça que, segundo a fabricante, poderia funcionar por mais de 50 mil ciclos.
McDonnell Douglas DC-10 da United Airlines, em imagem de arquivo — Foto: Reprodução/TV Globo
Nada disso era sabido quando o voo 232 decolou de Denver, no Colorado, em direção a Chicago e com destino final à Filadélfia com 285 passageiros e 11 tripulantes. Por causa de uma promoção da United para o dia das crianças, as passagens para menores de idade tinham preços promocionais, muito baixos. Cinquenta e duas crianças estavam a bordo, muitas delas viajando sozinhas.
No comando, estava Alfred Haynes, 57, piloto experiente com mais de 7 mil horas de voo em DC-10. A seu lado estava o copiloto Bill Records, 48, e o engenheiro de voo (profissão hoje praticamente extinta na aviação comercial) Dudley Dvorak, 51.
O voo, curto para a autonomia do DC-10, tinha previsão de cerca de duas horas em tempo aberto, sem ventos fortes e céu azul.
Caixas pretas do voo United 232 em 20 de julho de 1989, apresentadas pelo órgão investigador americano, o NTSB — Foto: Reuters
Barulho alto e trepidação intensa
Passageiros e tripulantes perceberam na hora um forte barulho alto e uma trepidação intensa que durou cerca de 30 segundos. A um programa de TV, um dos sobreviventes disse ter pensado se tratar de uma bomba. O comandante Haynes precisou aproximar o rosto do painel para ler os instrumentos.
A primeira atitude tomada pelos pilotos foi desligar o motor central, um procedimento normal na aviação, já que toda aeronave deve ser capaz de voar com um motor (ou, no caso do trimotor DC-10, até dois) a menos. A trepidação diminuiu, e o próximo passo era decidir se era possível levar o voo até Chicago ou declarar emergência e pousar em um aeroporto alternativo.
No entanto, logo ficou claro que o problema era bem mais grave do que parecia.

United Airlines 232: Pilotos realizam 'pouso impossível' e salvam dezenas de vidas
Quando o motor 2 foi desligado, o avião inclinou-se para a direita e para baixo. O copiloto Records rapidamente desligou o piloto automático e girou o manche para corrigir a rota, mas nada aconteceu. O comandante Haynes assumiu então o comando, mas a aeronave também não o obedeceu. Pouco depois, o engenheiro de voo confirmou que o equipamento estava com pane hidráulica total.
Mas como? Aviões comerciais de passageiros são projetados com diversos sistemas de redundância, para que, caso um componente sofra algum defeito, outro possa servir de alternativa. O sistema hidráulico do DC-10 tinha tripla redundância. Ou seja, existiam três sistemas independentes, cada um ligado a um dos motores, mas também ligados a todos os componentes hidráulicos da aeronave.
Todas as superfícies de controle – flaps, estabilizadores, elevadores, leme, ailerons etc – funcionam com acionamento hidráulico no DC-10, e podem ser controlados mesmo com a perda de dois sistemas hidráulicos.
Acontece que, ao explodir, o motor lançou detritos para todos os lados. A 11 km de altitude e a uma altíssima velocidade, alguns deles atingiram como projéteis os estabilizadores traseiros da aeronave, onde os três sistemas hidráulicos corriam próximos um do outro. Os fluídos vazaram e, em apenas dois minutos, o avião “sangrou até a morte”.
(Após esse acidente, válvulas foram instaladas em todos os DC-10 para impedir que os fluídos de todos os sistemas vazem em caso de rompimento dos tubos. Novas aeronaves também são projetadas de forma a evitar um incidente semelhante.)
Sem comandos, Haynes e Records usaram um último recurso para estabilizar o avião: controlar a potência dos dois motores restantes. Eles aumentaram o empuxo para levantar o nariz da aeronave, para que ele deixasse de apontar para o chão, e aceleraram mais um lado do que o outro, para contrabalançar a tendência de girar à direita.
Pouco depois da estabilização do avião, a tripulação recebeu o que talvez tenha sido a única boa notícia daquele voo. Um dos passageiros, Dennis Fitch, 46, não apenas era piloto da United como era instrutor do modelo DC-10. Ao notar a emergência, ele se colocou à disposição por meio de uma comissária, e Haynes aceitou que ele fosse à cabine de comando para prestar auxílio.
Fitch, um dos heróis do dia, assumiu as manetes de empuxo e, com seu conhecimento do equipamento e as instruções do comandante, manteve a aeronave estável durante o restante do voo.
Os agora quatro tripulantes sabiam, porém que o pior estava por vir: além de cada segundo do avião no ar ser um risco, o pouso seria inevitavelmente um impacto violento.
Numa situação normal, um avião prestes a aterrissar é colocado em configuração de descida, com o uso de flaps e outras superfícies que aumentam o arrasto e a sustentação a baixa velocidade. Só que voo 232 não teria nenhum desses auxílio, talvez nem mesmo freios. A única forma de controle que havia sobrado era a velocidade e a assimetria de potência dos motores. A esperança era que o reverso dos motores fosse capaz de parar a aeronave.
A tripulação decidiu pousar o mais rápido possível, declarando emergência. A torre de Minneapolis orientou o DC-10 para o aeroporto de Sioux City, no estado de Iowa. As duas pistas foram colocadas à disposição.
Houve uma discussão sobre aterrissar de barriga (sem usar os trens de pouso), mas ficou decidido baixar os trens para absorver parte do impacto. Em um voo normal, eles são acionados pelo sistema hidráulico; em caso de emergência, contudo, os mesmos podem baixar e travar somente com a gravidade.
Os pilotos receberam orientações para se alinhar à pista 31 do aeroporto, a maior do aeroporto de Sioux Gateway, mas, com as condições precárias de controle, a aproximação se deu pela pista 22, de apenas 2.099 metros, fechada permanentemente um ano antes. Equipes de resgate posicionadas na 22 tiveram que se deslocar de última hora.
Imagem do relatório final mostra trajetória errática da descida do voo United Airlines 232 — Foto: NTSB/Reprodução
'Esquerda, esquerda, esquerda'
A pista se aproximava rapidamente. Um pouso normal de um DC-10 ocorre a cerca de 260 km/h a uma razão de descida de um metro por segundo, mas o voo 232 estava a impressionantes 460 km/h e descendo 9,4 metros a cada segundo.
Se Fitch desacelerasse, porém, eles perderiam sustentação, e a aeronave cairia.
Quarenta e quatro minutos haviam se passaram a explosão do motor 2 e o pouso. Em uma última comunicação com os passageiros, o comandante Haynes havia informado que eles fariam um pouso de emergência e que todos deveriam se preparar para um forte impacto.
Faltavam segundos para o toque com o solo quando um vento cruzado inclinou a aeronave para a direita. Preocupado com uma queda de nariz no chão, Fitch acelerou a aeronave. Uma breve discussão ocorreu na cabine, registrada pela caixa-preta:
- Copiloto Records, referindo-se aos motores: “Fecha eles.”
- Comandante Haynes: “Vire à esquerda, feche-os.”
- Records: “Desligue-os.”
- Dennis Fitch: “Não, eu não posso desligar ou vou perder o controle, é isso o que está virando eles.”
- Records: “Ok.”
- Fitch: “Pra trás, Al!”
- Haynes: "Esquerda, potência à esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda, esquerda!!"
- (O alarme de proximidade com o solo começa a soar.)
- Haynes: “Todo mundo, se segura! Deus!”
Finalmente, um impacto é ouvido, e a gravação é interrompida.
Segundo o relatório de investigação do NTSB, a asa e o motor direitos tocaram o solo antes do trem de pouso. A fuselagem girou à direita e capotou, quebrando-se em cinco grandes pedaços, espalhados por um enorme milharal ao lado do aeroporto. Os passageiros estavam em três grandes seções. Quase todos os ocupantes da primeira classe morreram, assim como a maioria dos que estavam nos assentos do fundo.
Dos 296 ocupantes, 112 morreram (incluindo uma pessoa após mais de 30 dias de internação), 35 dos quais pela inalação de fumaça. Onze dos mortos eram crianças. Outros 47 tiveram ferimentos graves.
No total, foram 184 pessoas que saíram vivas de um voo que tinha chances mínimas de deixar qualquer sobrevivente.
Hayes e Records relataram ter desmaiado e têm memórias limitadas do pouso. Fitch, que estava em uma posição mais precária, agachado entre os dois pilotos, permaneceu consciente durante todo o tempo. Ele bateu a cabeça no painel, teve vários ossos quebrados e uma de suas costelas perfurou o pulmão. Quase morreu em sua primeira noite no hospital.
Dos quatro tripulantes, todos gravemente feridos, Fitch foi o que mais tempo demorou a se recuperar, e o último a voltar a voar. Ao fim, porém, os quatro retomaram suas carreiras.
Assim como Fitch, o comandante Al Haynes também rejeitou o título de herói. Em uma palestra à Nasa, ele atribuiu o sucesso do “pouso impossível” a cinco fatores: sorte, comunicação, preparação, boa execução e cooperação. Ele se aposentou em 1991, depois de quase 40 anos como piloto. Quando falava sobre o episódio, exaltava o papel dos comissários e do chefe do serviço de emergência que realizou o resgate, Gary Brown, de quem se tornou um grande amigo.
Em um artigo publicado pela Nasa, um piloto de DC-10 disse em tom de brincadeira, ao comentar o voo United 232 e as ações dos pilotos naquele 19 de julho: "A gente até poderia adicionar uma página ao manual sobre o que fazer naquela situação, mas iria dar no mesmo que escrever 'boa sorte'".
Infográfico: United 232, o pouso impossível — Foto: Bruna Azevedo/g1

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8 meses atrás
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